UMA PEQUENINA HISTÓRIA DA HABITAÇÃO POPULAR NO RIO DE JANEIRO 1565 - 2007.
A habitação refletiu sempre as condições sociais de um povo e, conforme sua estratificação social, surgem programas habitacionais condizentes com a necessidade da comunidade.
No período colonial, existiam apenas duas classes sociais estabelecidas no Brasil: senhores e escravos. Assim sendo, na cidade, despontavam os sobrados como sendo a habitação da elite, sendo as casas térreas o lugar dos pobres, escravos libertos, oficiais mecânicos e mulatos. Os negros habitavam as senzalas, o que, no caso das residências urbanas, ficava localizada no pavimento térreo dos sobrados. .
Com a vinda da Côrte para o Brasil em 1808, a crise habitacional se agravou, pois a cidade não tinha capacidade de receber tanta gente e de tal qualidade ao mesmo tempo. D. João autorizou para os fidalgos o uso da lei das Aposentadorias, onde os nobres requisitavam residências de particulares para si, acabando com o direito de propriedade. Um oficial de justiça se dirigia à casa cobiçada por algum fidalgo e escrevia a giz na porta as iniciais P.R. - Príncipe Regente, devendo o ocupante abandoná-la, de porteira fechada, em 24 horas. O povo interpretava as iniciais como "ponha-se na rua" ou "prédio roubado". .
Tendo-se assim agido desta forma agravado a crise das habitações, o Príncipe Regente D. João tomou diversas atitudes, postas em prática pela Intendência de Polícia, para minimizar o problema: autorizou a invasão de terrenos devolutos na área urbana, criou em 1810 a Cidade Nova, isentando de impostos quem ali construísse, criou a Paróquia de São João Batista da Lagoa, na zona sul (1809), estimulando a ocupação dos bairros do Catete, Botafogo, Lagoa e Gávea, e permitiu a construção de casas para pobres no Largo de São Francisco de Paula. Essas medidas foram eficazes e resolveram o problema, pelo menos até o segundo Império. .
No Segundo Império o problema da habitação popular se agravou, com a afluência cada vez maior do campo para a cidade de escravos libertos, da expansão urbana da cidade sem o menor planejamento e o mínimo de saneamento, e a grande afluência de imigrantes estrangeiros depois de 1850, tudo isso agravado pela eclosão de epidemias que grassavam à cada verão, ceifando milhares de vidas, geralmente de pobres. Proliferam por toda a área urbana os cortiços, que eram cubículos pequenos, sem banheiro, alugados por baixíssimo preço a ex-escravos e imigrantes pobres. Surgem as casas-de-cômodos, que eram antigas mansões coloniais sublocadas; e os bairros pobres se expandem, geralmente no entorno da zona portuária. A inexistência de banheiro nos cortiços e casas-de-cômodos, que os possuía apenas coletivos, agravavam o estado de saúde, transformando esses antros em focos epidêmicos. Isso forçou em 1850 o Imperador a ordenar que a Santa Casa de Misericórdia construísse três modernos hospitais e acabasse com os enterros nas igrejas, surgindo daí os cemitérios modernos. Os cortiços foram proibidos na área urbana em 1870, mas a medida não surtiu efeito, até porque membros da família Imperial eram donos de alguns desses estabelecimentos. .
Com a melhoria do sistema de transportes urbanos e a criação de novos bairros, desafogou-se um pouco o centro. Após 1888 surgem na cidade as primeiras vilas operárias, todas construídas por particulares que agora queriam arregimentar os ex-escravos, que trabalhavam nas muitas fábricas de tecidos da cidade, para morar nessas casas, que possuíam banheiros e eram mais bem construídas no geral. Esse tipo de habitação popular tomou conta de bairros outrora nobres, como São Cristóvão, Tijuca, Vila Isabel, Catete, Botafogo e Lagoa, onde ainda encontramos muitos exemplares em pé. Mas o fato dessas habitações serem apenas erguidas por particulares e para um fim específico, não impedia a construção dos infectos cortiços e casas-de-cômodos, que se espraiaram pela cidade como uma praga. O primeiro Prefeito do Rio, Cândido Barata Ribeiro, desenvolveu luta sem trégua contra eles, mas ao destruir o maior cortiço de todos, o "Cabeça de Porco", com mais de dois mil habitantes, posto abaixo em janeiro de 1893, levantou tanta oposição política na Câmara dos Deputados que ele foi forçado a deixar o cargo. Barata foi vencido pela poderosa máfia que mantinha esses estabelecimentos e possuía poderosas conexões no governo da República, assim como antes ocorrera no Império. .
Em 1897, com o término da campanha militar de Canudos, no interior da Bahia, muitas tropas do Exército chegaram ao Rio de Janeiro em novembro daquele ano, sendo desmobilizadas quase que de imediato no Quartel General do Exército, sito no Campo de Santana. Os ex-combatentes, não tendo para onde ir, subiram o morro da Providência, logo atrás do quartel e ali construíram casas de pau-a-pique e madeira. Como o acampamento em Canudos era no morro da Favela, onde existia essa planta leguminosa de pequeno favo, eles apelidaram assim o lugar, surgindo desta forma o famoso topônimo. Até 1930, quando se referia ao termo "favela", era para assim o indicar especificamente o conjunto de habitações do morro da Providência, depois se tornando um designativo genérico para definir esse tipo de invasão e habitação. .
De 1902 a 1906 a crise habitacional se agravou como nunca antes, com o início da grande reforma urbana efetuada pelos governos Federal e Municipal. Durante quatro anos, foram demolidos quase trezentos cortiços e, ao menos, vinte mil habitações foram arrazadas nas áreas central e periférica. Sem ligar muito para o problema habitacional, a Prefeitura apenas construiu pouco mais de uma centena de casas na avenida Estácio de Sá e uma pequena vila operária na Glória. De resto, apenas palácios de mármore e granito foram obras apoiadas pelos órgãos institucionais. Os pobres tiveram de migrar para a zona norte, onde foram construídos quartéis e melhorados os sistemas de transporte, ou então tiveram de subir os morros, surgindo outras favelas, como a dos morros de Santo Antônio, Castelo, São João, em Copacabana, e outros. .
Em 1920/22, a Prefeitura derrubou o morro do Castelo, local de grande número de habitações populares, agravando ainda mais o problema. Como se fosse pouco, a crise do café de 1929 fez com que milhares de ex-agricultores abandonassem as fazendas do Vale do Paraíba e se estabelecessem na área urbana do Rio, forçando nova ocupação dos morros, como os de Santa Marta, em Botafogo; e Rocinha, na Gávea. .
Tudo isso mudou em 1930 com a revolução comandada por Getúlio Vargas. Vendo o trabalhador como uma força política e sentindo de perto o problema da falta de habitações para eles, Vargas tomou para o Governo essa função, criando em 1931 os famosos Institutos de Aposentadorias e Pensões, que tinham, dentre outras obrigações, a construção de casas para operários. Foi desenvolvida uma ampla e moderna política habitacional, não somente para o Rio, mas para todo o país. O lema de Vargas era "transformar cada trabalhador num proprietário, e cada proprietário num trabalhador". .
Mas a Segunda Guerra Mundial interrompeu essa notável iniciativa, que quase zerou o déficit habitacional no Brasil. Como os materiais de construção eram importados, a construção de casas operárias cessou quase que por completo em 1940. Pior, a crise de combustível levou a extinção dos ônibus na cidade, obrigando os trabalhadores a morar perto do local de seus ofícios, estimulando a favelização de quase todos os morros das zonas sul e norte do Rio. O aumento dos aluguéis estimulou o despejo de muitas famílias, surgindo a temida "denúncia vazia", o que forçou Vargas a congelar os aluguéis em 1942. Essa medida, em vez de resolver ou minimizar o problema, desestimulou ainda mais a construção da habitação popular, e somente existiam verbas para grandes edifícios de apartamentos particulares de luxo nas orlas do Flamengo, Copacabana, Ipanema e Leblon. Os operários da construção civil, não podendo se deslocar pela cidade, ocuparam todos os morros dos bairros praianos da zona sul onde essa febre imobiliária ainda permitia a atividade construtiva. .
Após a Segunda Guerra Mundial e a redemocratização do país, o Prefeito do Rio, Marechal Ângelo Mendes de Moraes, iniciou um amplo programa de construção de casas populares, chegando a iniciar os conjuntos habitacionais de Pedregulho, em Benfica; e Parque Proletário, na Gávea; bem como os Institutos de Aposentadorias e Pensões recomeçaram a construir mais conjuntos na zona oeste, em especial em Realengo e Guadalupe, mas a Copa do Mundo de 1950 desviou esforços, verbas e gente para terminar as obras do estádio do Maracanã. Nenhum desses conjuntos foi ultimado e os projetos habitacionais não tiveram continuidade após 1950. .
O crescimento desordenado da cidade, conjugado com a inércia oficial das autoridades para a resolução do problema da habitação permitiu que surgissem favelas em áreas nobres, como a Lagoa Rodrigo de Freitas, Ipanema e Leblon. Em 1954, a Municipalidade do Rio iniciou um plano sistemático de remoção de favelas, mas o fato de apenas serem retiradas as que ocupavam lugares disputados pela especulação imobiliária e a inexistência de infra-estrutura das áreas onde eram assentados os antigos moradores, na zona Oeste, levou apenas o problema de um ponto a outro da cidade. Eram estas apenas operações pontuais, sem obediência a um plano geral. A única iniciativa de reurbanização sem remoção não passou de apenas uma experiência, aliás, razoavelmente bem sucedida, com a Cruzada São Sebastião, iniciativa da Arquidiocese do Rio de Janeiro de melhorar as condições de moradia dos favelados da favela da Praia do Pinto, no Leblon. O arquiteto Oscar Niemeyer projetou o conjunto erguido em 1954/55. A ausência de um apoio aos moradores levou logo os prédios a uma rápida deterioração.
A criação do Estado da Guanabara acelerou o processo de .
esvaziamento econômico da cidade, estimulando a favelização. A eleição de Carlos Lacerda para o Governo do novo Estado o comprometeu a executar um ousado plano de remoção de favelas, conjugado a outro de edificação de moradias. Com efeito, doze favelas foram removidas em quatro anos, mas a iniciativa se tornou tímida, ante a constatação de que na cidade existiam então mais de trezentas comunidades faveladas. A construção dos grandes conjuntos de Vila Kennedy e Cidade de Deus nem de longe supriram o déficit imobiliário de residências, fora o fato de que continuaram os problemas e vícios da década anterior. Apenas eram removidas as favelas cujo solo era disputado pelo capital imobiliário, e o lugar onde eram assentados não possuía oferta de emprego, nem de transporte eficiente. .
O Banco Nacional da Habitação foi uma das primeiras criações surgidas após o golpe de 1964, e objetivava, em linhas gerais, suprir esse déficit habitacional através de uma grande iniciativa governamental, aliada a um bem elaborado projeto de financiamento da casa própria, que tornava os imóveis acessíveis a qualquer bolso. Inicialmente funcionou muito bem, mas o fracasso da política econômica governamental, aliada a uma série de distorções políticas pelas quais o programa passou na década de 1970, levou ao desvio dos objetivos iniciais, bastando dizer que já na década de 70 o BNH apoiava mais as aspirações da classe média que do operariado para o qual havia sido criado. .
A política urbana do Estado da Guanabara somente veio agravar a crise, com ações que visavam a remoção de bairros proletários inteiros do centro da cidade para a periferia, sendo demolidos o Catumbi, Estácio e Cidade Nova e Lapa, para em seus lugares surgirem espigões residenciais de classe média. Os protestos gerais provocados pelos moradores, em especial os do Catumbi, levou a suspensão dessa onda destrutiva em meados da década de 1970. .
Com a fusão dos estados da Guanabara e Rio de Janeiro em março de 1975, o esvaziamento econômico da antiga Guanabara aumentou, trazendo a pobreza a rincões os mais diversos da cidade. Em 1977, o Plano Urbanístico Básico da Cidade estipulava que as favelas não mais deveriam ser removidas, e sim reurbanizadas. Em 1980, o Prefeito Israel Klabin definiu a reurbanização como sendo a atual política municipal e não mais a remoção, pura e simples. .
Somente em fins da década de 1990 é que saíram do papel alguns planos de reurbanização de favelas, quando se pôs em prática o Programa Favela-Bairro, da Prefeitura, mas o uso político dessas obras, e o caráter elitista e discriminador de outras, tem somente servido para estimular ainda mais o processo de favelização do espaço urbano carioca, estando a solução bem longe do fim. A não realização de uma reforma agrária estimula a invasão dos poucos espaços livres nos morros da cidade. .
Em verdade, vale aqui muito bem a célebre frase de Paul Singer: "A cidade capitalista não tem lugar para os pobres". .
Milton de Mendonça Teixeira.
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